Miriam Lifchitz Moreira
Leite, coordenadora científica do Núcleo
Interdisciplinar do Imaginário e da Memória da
Universidade de São Paulo.
Hoje,
Maria Lacerda de Moura, é nome de uma rua no Rio de
Janeiro e de uma escola pré-escola na periferia de
São Paulo, sinais de um reconhecimento oficial da
personagem que representa. Tem uma tese de doutorado
sobre sua trajetória pessoal, na Universidade de
São Paulo e múltiplas referências em outras.
Alguns outros trabalhos estão sendo elaborados
comparando sua atuação à de outras anarquistas
contemporâneas e aprofundando a análise de sua obra
como educadora.
Não é
mais a autora silenciada pela imprensa e pela
academia ou difamada e incompreendida pelos
contemporâneos. Não está mais numa posição
isolada e singular na galeria dos rebeldes sociais.
É
chegado portanto o momento de reavaliar a sua
contribuição, agora que os Estudos sobre a Mulher
ganharam um estatuto respeitado dentro e fora das
Universidades. Não se trata mais de tirá-la do
ocultamento e dos malentendidos, tnas de reexaminar
seus escritos, verificando até que ponto eles
admitem releituras, com o instrumental da crítica
social feminista aguçada e desdobrada nas últimas
décadas.
O que se
destacou primeiramente nesta releitura foi a
persistência do discurso espiritualista e
teosófico. Nem os estudiosos de história política
das primeiras décadas do século XX, nem os
estudiosos do anarquismo assinalaram devidamente essa
persistência que se prolonga dos primeiros escritos,
ainda em Barbacena (1918) até a última
conferência, pronunciada na fraternidade Rosa Cruz
do Brasil, no Rio de Janeiro (1943).
Como os
estudos foram realizados durante os anos de chumbo da
repressão militar (1964 - 1984), as dimensões
políticas destacaram-se na caracterização da
rebeldia da escritora, vista como divulgadora social
intermediária, entre a revolta e a revolução. Os
contornos políticos de sua aproximação dos
anarquistas e comunistas na década de 20 e seu
pioneirismo nos escritos antifascistas tiveram uma
ênfase incompatível com a extensão cronológica
dessa atuação. Essa aproximação durou desde sua
mudança para São Paulo, em 1921, até a
dissolução da comunidade de Guararema, em 1935, em
publicação na imprensa, em panfletos e livros e
continuaram vivas na correspondência com D. Albina
Moreira Lima de Barbacena entre 1938 e 1943.
Concorreu
para essa desatenção ao teor espiritualista e
teosófico na obra as rupturas sucessivas e públicas
da escritora com os diferentes grupos tanto
políticos quanto espiritualistas, que interromperam
todas as alianças que teve. Talvez também tenha
havido, da parte dos estudiosos anarquistas e
académicos, um despreparo para lidar com o
simbolismo, os enunciados e o encadeamento
definidores do universo discursivo da Autora.
Sua
independência, recusando explicitamente deixar de
pensar por si mesma, fez com que suas relações com
os anarquistas (muitos dos quais aderiram ao partido
comunista a partir de 1922), dela se afastassem
quando, numa conferência elogiou o programa
educacional de Lunatcharsky adotado na União
Soviética que, a essa altura já estava eliminando
os antigos aliados de
seus quadros. O individualismo declarado de Maria
Lacerda de Moura, em contraste com seus ideais de
fraternidade, dificultava a continuidade de suas
alianças tanto entre educadores, como na Sociedade
Teosófica, na Federação Brasileira da Mulher, como
no Comitê Feminino contra a Guerra.
Muitos
anarquistas e homens de esquerda aliavam o misticismo
à atuação política na década de 20. Mas para os
comunistas, que abafaram os antigos aliados, ao
escrever uma história dos vencedores da esquerda, o
horizonte se fechara de uma doutrina socialista
internacional para um nacionalismo estreito e a
religião, como ópio do povo, passara a ser
reacionário, colocado no campo inimigo.
Todos
esses dados conjunturais conformam a incompreensão
que pairou sobre a figura controvertida de Maria
Lacerda, que não dispensa uma reflexão sobre a
influência de Helena Blavatsky (Rússia 1831 -
Madras-Londres 1891) e Annie Besant (Londres 1847 -
Madras 1933). Essas influências auxiliam a focalizar
a ligação entre o espiritualismo e a emancipação
da mulher, a aliança entre Ciências Ocultas e o
Neo-Maltusianismo.
Os sonhos
de uma fraternidade de iguais, sem distinção de
sexo, cor e classe, acalentados através da
resistência passiva, da desobediência civil e de
recursos à não violência, que renasceram com os
hippies da década de 60, tiveram suas maiores
expressões nas obras de Tolstoi e Gandhi, figuras a
que Maria Lacerda de Moura acrescentava a de Cristo.
Vêm das
obras desses mestres as raízes das
idéias pacifistas de Maria Lacerda, que contrastam
com o estilo agressivo e precioso com que enfrentou a
desqualificação ou a incompreensão de suas idéias
no ambiente brasileiro. Os três artigos intitulados
Guerra à guerra! publicados em O
Combate (SP) de 19/11/1927, 20/12/1928 e
2/11/1935 completam a denúncia feita nos intitulados
De Admundsen a deI Prete (1928) sobre a
infiltração fascista na imprensa e nas escolas ,
difundindo a violência e conduzindo à guerra que
iniciada na África, se transformaria na Segunda
Guerra Mundial (1 939-1 945). Expressou também suas
idéias pacifistas e as ações diretas que as
mulheres poderiam exercer no livreto Serviço
Militar Obrigatório para a Mulher! Recuso-me!
Denuncio! em resposta à mobilização feminina
que estava-se difundindo e chegou ao Brasil por
ocasião da chama Revolução Constitucionalista de
1932. Esses anos da ascensão e do avanço do
fascismo por todos os países foram acompanhados pela
Autora por livros contundentes como Clero e
Fascismo horda de embrutecedores (1934) e
Fascismo, filho dileto da Igreja e do capital
(s/d) que desdobram as conseqüências trágicas do
caminho para a guerra.
Quando no
início da década de vinte sugerira a introdução
do estudo de História das Mulheres nas escolas
femininas, Maria Lacerda de Moura não imaginou que
somente sessenta anos depois é que haveria
condições para que essa historia viesse a ser
formulada. As classes mistas ainda não existiam nas
escolas. Um segredo tácito cercava as relações
sexuais e familiares, assegurado pelo isolamento das
mulheres em suas casas, ocupadas pelos trabalhos
estafantes, pela procriação anual e pelas ameaças
e flagelos sociais. Ao levantar essa cortina de
silêncio e tratar da vida privada como questão
política e pública, passivel de análise e
transformação (como só se viria a fazer depois da
década de 70, quando os movimentos feministas
estimularam o desenvolvimento dos Estudos sobre a
Mulher) denunciou as mentiras convencionais que
cercavam os conflitos, as relações de poder e seus
abusos, a violência e a exclusão dentro das
famílias de camadas sociais médias. Sua defesa da
maternidade consciente e do amor plural não só a
colocaram em oposição aos preceitos de obediência
e submissão impostos secularmente à mulher, como
puseram sob suspeita a seriedade de sua obra. O
planejamento familiar continua sendo uma afronto à
sociedade e as mulheres que ousam discutir a
sexualidade e o amor ainda são vistas com
ambigüidade e desconfiança.
Quando
denunciou a dupla moral vigente para os homens,
enquanto aprisionava as mulheres em casamentos
monogâmicos contratados por interesses econômicos,
fora dos quais ficavam excluídas socialmente como
solteironas ou prostitutas, atribuia diretamente à
família burguesa esses desequilíbrios sociais.
Tendo
verificado que a paz era um meio para o preparo
eficaz da guerra, ou, em suas palavras "para a.
crueldade organizada sadicamente dentro da lei
convenceu-se de que a vida só poderia ser vivida
integralmente dentro da liberdade e do amor à
natureza, cada qual, em harmonia consigo mesmo. Como
sentia a civilização e a vida urbana como uma
corrida feroz de exploração dos fracos, através de
preconceitos e privilégios, em que as pessoas
tornavam-se cúmplices das infâmias do Estado,
inclusive as guerras para sustentar
malfeitores, acabou achando que cada um só
pode educar a si mesmo, pois as palavras são
deturpadas entre os lábios e os ouvidos e dos
ouvidos para os lábios.
Nesta
posição, considerada por alguns contemporâneos
como uma perturbação mental e por outros como uma
forma de alienação da sociedade, deixou implícita
a crise dos paradigmas das Ciências Humanas, que
passaram a desconstruir não só os conceitos
formulados, como as disciplinas estruturadas, para
buscar o conhecimento no universo do discurso.
Essa foi
a fundamentação de sua retirada para a comunidade
de Guararema, em companhia de objetores de
consciência da Primeira Guerra Mundial, italianos,
espanhóis e franceses. Viveu ai até 1935, quando as
medidas repressoras de Getúlio Vargas, vieram
dispersá-los, prendendo uns e deportando outros, e
deixando Maria de Lacerda novamente só, diante de
seu universo.
NOTA:
O ensaio acima foi especialmente preparado para o
Anuário 96/97 da ABL (SP ,27-8-1996). Miriam
Lifchitz Moreira é Historiógrafa Doutora do Centro
de Apoio à pesquisa em História da USP. Em 1984,
lançou pela Editora Ática sua tese sobre MLM com
título de Outra Face do Feminismo: Maria
Lacerda de Moura" num total de 171 pp.
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